O PREÇO E A BELEZA DO PERDÃO: Uma Jornada de Cura e Redescoberta da Fé. (Amostra).
- Flávio Macieira
- há 1 dia
- 23 min de leitura
Por: Pastor Flávio Macieira

Uma Palavra ao Coração do Leitor
Querido(a) leitor(a),
Se estas páginas chegaram até você, acredito que não foi por acaso. Há momentos em nossa jornada em que a vida nos confronta com dores que parecem grandes demais para suportar, com perdas que estilhaçam nossa alma e com injustiças que nos fazem questionar o próprio sentido da existência. Em meio a esses desertos, a busca por um oásis de paz, por um caminho de cura, torna-se não apenas um desejo, mas uma necessidade vital.
A história que você está prestes a ler, "O Preço e a Beleza do Perdão", nasceu de uma profunda reflexão sobre essas experiências universais. Ela brotou da observação atenta (e, por vezes, da vivência pessoal) de como o sofrimento pode nos moldar, nos quebrar, mas também, paradoxalmente, nos abrir para uma compreensão mais profunda da graça, da resiliência do espírito humano e, fundamentalmente, do poder transformador do perdão.
O perdão. Que palavra carregada de significados, de desafios, e, para muitos, de uma aparente impossibilidade! Quantas vezes nos vemos aprisionados pelas correntes da amargura, do ressentimento, do desejo de uma justiça que parece nunca chegar? Quantas vezes o peso do passado nos impede de caminhar com leveza em direção ao futuro que Deus sonhou para nós?
Escrever a jornada de Lucas foi, para mim, uma forma de explorar essas questões não com respostas prontas ou fórmulas mágicas, mas com a honestidade de quem reconhece a complexidade da alma humana e a profundidade das feridas que a vida pode infligir. Foi uma tentativa de encontrar, em meio aos escombros da dor, os "ecos da graça" que, teimosamente, insistem em nos chamar de volta à vida, à esperança, à possibilidade de um novo amanhecer.
Minha oração é que, ao acompanhar os passos de Lucas por sua "trilha estreita", você também possa encontrar ressonância para suas próprias lutas e questionamentos. Que esta narrativa o inspire a refletir sobre o "preço" que pagamos quando nos agarramos à dor, mas também sobre a indescritível "beleza" que floresce quando ousamos dar o primeiro passo em direção ao perdão – não necessariamente como um sentimento que surge de repente, mas como uma decisão corajosa de libertar o prisioneiro e descobrir, como Lucas, que o prisioneiro éramos nós mesmos.
Que a história de Lucas seja para você não apenas uma leitura envolvente, mas um convite para olhar para dentro, para suas próprias batalhas, e para encontrar, mesmo na noite mais escura, as estrelas da esperança e da graça divina que nunca deixam de brilhar. Com carinho e orações,
Pastor Flávio Macieira
Marataízes, ES em 20 de maio de 2025.
SUMÁRIO
Uma Palavra ao Coração do Leitor
Ato I: A Luz Apagada
Parte 1: O Mundo de Luz de Lucas (Epígrafe: Eclesiastes 9:9, NVT)
· Capítulo 1: Melodias de uma Manhã de Domingo
· Capítulo 2: O Toque da Esperança e o Arrepio na Alma
Parte 2: A Sombra da Tragédia (A Ferida) (Epígrafe: Lamentações 3:17-18, NVT)
· Capítulo 3: A Última Canção da Manhã e o Silêncio da Emergência
· Capítulo 4: O Sorriso Arrogante e a Semente da Amargura
Parte 3: O Mundo em Cinzas de Lucas (Epígrafe: Jeremias 15:18, NVT)
· Capítulo 5: O Fantasma no Apartamento e a Fé em Ruínas
· Capítulo 6: A Obsessão e a Resolução Sombria em Guarapari
Ato II: Entre Escombros e Sussurros
Parte 1: O Confronto (Epígrafe: Oséias 2:14a, NVT)
· Capítulo 7: Invasão na Festa e o Gosto Amargo do Vazio
Parte 2: Sussurros na Escuridão (Epígrafe: Salmo 139:7-12, NVT)
· Capítulo 8: A Madrugada em Guarapari e o Eco da Dor
· Capítulo 9: O Visitante Indesejado e a Busca na Tempestade
Parte 3: O Despertar Doloroso (Epígrafe: Oséias 6:1, NVT)
· Capítulo 10: O Ultimato da Injustiça e o Grito da Alma
· Capítulo 11: A Trilha Estreita e o Sussurro do "E Se...?"
Parte 4: Ecos da Graça (Epígrafe: Mateus 11:28, NVT)
· Capítulo 12: O Diário de Sofia e o Convite à Edificação
· Capítulo 13: Passos Hesitantes na Casa da Fé
· Capítulo 14: A Companhia dos Salmos e a Batalha Interior
· Capítulo 15: O Cansaço e o Choro no Parque da Memória
· Capítulo 16: A Oração do Coração Esgotado
· Capítulo 17: A Intuição de Honrar e a Ponte para Daniel
· Capítulo 18: O Convite para Sair da Escuridão
· Capítulo 19: Um Farol no Projeto Social
· Capítulo 20: A Brasa Sob as Cinzas e o Foco no Que Edifica
· Capítulo 21: O Chamado Inesperado e a Presença que Cura
· Capítulo 22: O Solo Endurecido e a Semente da Graça
· Capítulo 23: Outras Vozes e a Coragem de Agradecer
· Capítulo 24 (Revisado): Pipas ao Vento e a Lição de Soltar as Linhas
· Capítulo 25: A Visita do Pastor e o Perdão como Decisão
· Capítulo 26: O Nó da Oração e a Luta Consciente
· Capítulo 27: A Escolha da Reação e o Eco da Agência
· Capítulo 28: A Trilha Sonora Interna e o Não Desafinar Tanto
· Capítulo 29: A Lanterna da Gratidão em Meio à Dor
· Capítulo 30: O Veneno da Amargura e a Escolha de Não se Consumir
· Capítulo 31: O Teste da Notificação e o Passo para Não Afogar
· Capítulo 32: A Sabedoria do Pastor e a Permissão para Ser Imperfeito
· Capítulo 33: A Corda Bamba e a Dignidade como Escudo
· Capítulo 34: O Reconhecimento Mudo e a Coragem de Falar
· Capítulo 35: O Silêncio Denso e o Veneno que Escoa
· Capítulo 36: A Leveza nos Ombros e a Escolha Diária da Cura
· Capítulo 37: O Legado de Amor e os Primeiros Traços de Luz
· Capítulo 38: O Ateliê da Alma e as Cores da Emoção
· Capítulo 39: A Inquietação da Ação e o Chamado da Vocação
· Capítulo 40: O Café da Reconstrução e o Caminho no Deserto
· Capítulo 41: As Botas para a Caminhada
· Capítulo 42: Um Dia de Cada Vez no Hospital da Memória
· Capítulo 43: A Ponte Sutil entre a Dor e o Propósito
· Capítulo 44: A Luz de Sofia e a Semente da Comunidade
· Capítulo 45: O Diário de Bordo da Alma
· Capítulo 46: A Proposta de Acordo e a Trilha Mais Escura
· Capítulo 47: A Libertação do Prisioneiro Interior
· Capítulo 48: O Desfiladeiro Atravessado e os Ecos Mais Audíveis
· Capítulo 49: Semeando o Terreno Vazio com Propósito
· Capítulo 50: A Firmeza dos Passos na Trilha Estreita
· Capítulo 51: O Projeto Piloto e a Esperança que Floresce
· Capítulo 52: A Parceria que Edifica e a Memória que Inspira
· Capítulo 53: A Melodia Hesitante do Violão e o Futuro Composto
· Capítulo 54: A Voz da Experiência e o Convite à Comunhão
· Capítulo 55: Bem-vindo ao Clube dos que Caminham no Deserto
· Capítulo 56: A Vereda em Companhia
· Capítulo 57: Estendendo a Mão em Meio às Ruínas
· Capítulo 58: Movendo Montanhas com Colheres de Chá e Fé
· Capítulo 59: A Decisão de Não Deixar a Sombra Vencer
· Capítulo 60: O Sol de Giz de Cera em Meio à Tempestade
· Capítulo 61: A Lanterna na Noite Escura da Alma
· Capítulo 62: A Companhia dos Salmos na Luta Diária
· Capítulo 63: O Convite para Soltar Pipas e Corações
· Capítulo 64: A Brisa Leve da Normalidade
· Capítulo 65: A Multa e o Penhasco Íngreme
· Capítulo 66: A Escolha de Buscar Ajuda na Tempestade
· Capítulo 67: A Maratona do Perdão e a Paciência Consigo Mesmo
· Capítulo 68: Aprendendo a Não Brigar com a Tempestade
· Capítulo 69: O Legado Vivo e a Esperança Multiplicada
· Capítulo 70: A Missão de Honrar e o Rumo na Tempestade
· Capítulo 71: O Bálsamo da Comunidade e a Força da Partilha
· Capítulo 72: A Anotação de Sofia e o Desafio da Libertação
· Capítulo 73: Criando Espaço para a Luz Entrar
· Capítulo 74: O Céu Vasto e as Nuvens que Passam
· Capítulo 75: O Encontro Inesperado e a Escolha da Liberdade
· Capítulo 76: A Promessa de Harmonia em Meio à Dor
· Capítulo 77: Redescobrindo as Cores na Paleta da Vida
· Capítulo 78: O Passo Mais Difícil e Importante
Ato III: A Melodia da Aurora (Epígrafe: Filipenses 3:13b-14, NVT)
· Capítulo 79: A Oração da Entrega e a Coragem de Sarar
· Capítulo 80: A Leveza da Alma e o Barco que Navega Melhor
· Capítulo 81: A Chave das Próprias Grades e a Força da Comunhão
· Capítulo 82: A Cicatriz como Testemunho e a Certeza do Sol
· Capítulo 83 (Capítulo Final/Epílogo): A Melodia que Continua
Guia de Estudo e Perguntas para Discussão
Referências Bíblicas
Sobre o Autor
Continue Sua Jornada de Cura e Esperança!
Ato I:
A Luz Apagada
Parte 1
O Mundo de Luz de Lucas
"Desfrute a vida com a mulher que você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus lhe deu debaixo do sol. Sim, aproveite cada dia, pois é a sua recompensa neste mundo pelo seu trabalho." (Eclesiastes 9:9, NVT)
Capítulo 1
O aroma de café recém-coado, promessa de um domingo sem pressa na ampla cozinha do apartamento com vista para a Baía de Vitória, entrelaçou-se com o resmungo sonolento de Sofia. Lucas sorriu antes mesmo de abrir os olhos. O braço dela, leve sobre seu peito, e o calor familiar eram seu refúgio, a personificação da paz que ele tanto agradecia a Deus em suas orações matinais. Tempestades? Pareciam pertencer a outro universo, distantes daquele lar abençoado que, tijolo por tijolo, haviam construído sobre a rocha firme do amor e da fé compartilhada.
Ele se moveu com o cuidado de quem manuseia algo precioso, aninhando-a. Sofia murmurou algo sobre anjos e melodias, o rosto afundado no travesseiro, os cabelos escuros como uma cascata rebelde sobre o linho claro. Na mesinha de cabeceira dela, a Bíblia com capa florida repousava ao lado de um romance pela metade. Lucas afastou uma mecha dos olhos de Sofia, um gesto de ternura praticado e aperfeiçoado ao longo de uma década de cumplicidade.
"Bom dia, meu amor," ele sussurrou, a voz ainda rouca de sono. "Ou devo dizer, boa tarde, futura viajante da Patagônia?"
Sofia sorriu, os olhos ainda cerrados, mas um brilho escapando por entre os cílios. "Só mais um pouquinho... sonhei que já estávamos lá, Lucas. O vento, as montanhas... era tão real."
"Eu sei, meu bem. E vamos estar, se Deus quiser, no próximo ano," ele respondeu, beijando-lhe a testa. "Mas, por agora, temos um domingo ensolarado nos esperando aqui em Vitória e, se minha intuição de médico não falha, um bolo de fubá com goiabada pedindo para ser devorado." Ele sabia que a menção ao bolo era infalível.
Ela finalmente abriu os olhos, cor de mel, que sempre o lembravam da doçura da vida. "Doutor Lucas e suas intuições gastronômicas... imbatível! Mas só depois do nosso devocional. Sua vez de escolher a leitura hoje."
Lucas riu, um som que preenchia o quarto com contentamento. "Combinado. E quem sabe a leitura não nos inspire para os 'grandes planos' de hoje?" Ele a provocou, lembrando-a da conversa da noite anterior sobre visitarem aquele casal de amigos da igreja que recentemente tivera um bebê.
Sofia espreguiçou-se como uma gata satisfeita, enlaçando-o em um abraço que parecia conter toda a segurança do mundo. "Você sempre sabe como me convencer." Ela aconchegou a cabeça em seu ombro. "Sabe, Lucas, às vezes eu olho para tudo o que temos, para nós dois... e parece tão... perfeito. Como se uma bênção especial nos guardasse, como se nada pudesse nos atingir."
Ele a apertou um pouco mais, o coração pleno daquela convicção que tantas vezes partilhavam em suas conversas e orações. "E Deus tem nos guardado, meu amor. Ele é fiel." Lucas disse com a serenidade de quem construíra sua vida sobre essa certeza. "Enquanto estivermos juntos e com Ele, somos fortaleza."
Mal sabia ele, no entanto, que mesmo a fé mais convicta e o amor mais forte podem ser testados por tempestades que surgem sem aviso, desafiando até as fundações mais profundas da alma. A vida, com sua beleza e sua fragilidade, tinha suas próprias estações.
Capítulo 2
O bipe constante, quase uma pulsação metálica da própria ala pediátrica do Hospital da Providência Divina, um dos maiores de Vitória, era uma canção que Lucas aprendera a filtrar, atento apenas às variações que sinalizavam urgência. Naquela tarde de terça-feira, porém, era o silêncio denso do quarto 307 que mais lhe chamava a atenção, um silêncio de dor contida, quebrado apenas pelo choro baixo de Ana, a jovem mãe curvada sobre a poltrona ao lado do pequeno leito hospitalar.
Clara, sua filha de cinco anos, dormia. Os cachos castanhos, normalmente vibrantes, repousavam pálidos sobre o travesseiro imaculado. O diagnóstico da manhã – uma leucemia agressiva, cujas palavras técnicas ainda ecoavam com crueldade nos ouvidos dos pais – havia chegado como um veredito. Fora Lucas o encarregado da difícil tarefa de comunicá-lo, e ele sabia, por experiência e por sua fé que o lembrava da fragilidade humana, que nenhuma preparação tornava aquele momento menos devastador.
Ele bateu de leve na porta antes de entrar, o sorriso profissional habitualmente rápido agora suavizado por uma empatia que lhe vinha do coração. Tiago, o pai, levantou-se num instante, o cansaço de uma noite em claro vincado no rosto.
"Doutor Lucas," a voz dele era um fio. "Alguma novidade?"
Lucas aproximou-se, seu olhar buscando transmitir uma calma que ele mesmo precisava cultivar em momentos assim. "Ainda estamos aguardando alguns resultados para ajustarmos o protocolo de tratamento, Tiago. Mas vim, principalmente, ver como a Clara está e, claro, como vocês estão se sentindo." Inclinou-se para observar a menina, seus dedos ágeis verificando os acessos, o olhar clínico atento, mas sem perder a humanidade.
Ana ergueu o rosto, os olhos marejados encontrando os de Lucas. "Ela dormiu bastante. A enfermeira disse que é bom... mas é tão... quieta. A Clara fala pelos cotovelos, doutor." Um soluço preso na garganta.
Lucas puxou uma cadeira, um gesto simples para diminuir a distância e o peso da autoridade médica. "Eu imagino, Ana. É um processo, e cada criança tem seu tempo. O importante é que ela está descansando e sem dor agora."
Fez uma pausa, permitindo que suas palavras assentassem. "Sei que um diagnóstico como este parece um abismo," ele disse, o tom agora mais íntimo, quase pastoral, "e não há como dourar a pílula. A jornada à frente exigirá muita força." Olhou de um para o outro, com a firmeza de quem não foge da verdade, mas também com a compaixão de quem já viu a fé operar em circunstâncias impossíveis. "Mas quero que se lembrem de algumas coisas importantes. Primeiro, a medicina hoje nos dá muitas ferramentas, e a Clara é uma lutadora. Temos uma equipe excelente aqui, e vamos usar tudo ao nosso alcance." Viu um lampejo de atenção nos olhos de Tiago. "E segundo..." – sua voz tornou-se mais branda, mais pessoal – "lembrem-se de onde vem a nossa verdadeira força. Nos momentos em que o nosso chão parece sumir, é fundamental nos agarrarmos à Rocha que é firme. A oração pode ser um refúgio e uma fonte de paz que excede o nosso entendimento."
Ele não citou versículos específicos naquele momento de dor aguda, mas a referência à "Rocha" e à "oração" era um convite à fé que eles, como ele, talvez compartilhassem ou pudessem buscar. Era um lembrete da esperança que não se baseava apenas em prognósticos, mas na soberania e no amor de Deus, mesmo quando o caminho era incerto.
Um suspiro mais calmo veio de Ana. Tiago assentiu lentamente, parecendo absorver não apenas as palavras, mas a convicção serena de Lucas.
"Obrigado, doutor," disse Tiago, a voz ainda embargada, mas com um novo matiz de resolução. "Obrigado pelas palavras... e pela sua fé."
Lucas ofereceu um sorriso breve, mas genuíno. "Contem comigo. E contem com Ele. Estarei acompanhando tudo de perto." Ele se levantou. "Qualquer coisa, não hesitem em chamar."
Ao deixar o quarto, Lucas sentiu o peso daquele encontro, mas também uma renovada convicção em seu próprio chamado. Ser médico, para ele, era mais do que ciência; era um ministério de cuidado, onde a técnica e a fé se encontravam para servir e, quando Deus permitia, para curar e restaurar a esperança.
O restante do plantão transcorreu na rotina habitual de um hospital movimentado – emergências menores, altas programadas, a papelada que parecia se multiplicar sozinha. Quando finalmente entregou o plantão, já no início da noite, o cansaço pesava em seus ombros, mas havia também aquela satisfação serena de um dia produtivo, de ter feito a diferença, por menor que fosse.
No caminho para casa, o trânsito de Vitória, já mais calmo naquele horário, fluía com uma previsibilidade reconfortante. Lucas ligou o rádio, buscando uma música suave para relaxar. Pensava em Sofia, no jantar que ela provavelmente estaria preparando, no conforto do lar que o esperava. Um sorriso brotou em seus lábios. Sim, a vida era boa. Abençoada.
Foi então, parado em um semáforo particularmente demorado na Avenida Beira-Mar, com a brisa noturna entrando pela janela entreaberta e trazendo o cheiro familiar da maresia, que a sensação o atingiu. Não era um pensamento claro, nem uma visão, mas uma onda gélida e inexplicável de apreensão que percorreu sua espinha, arrepiando os pelos de seus braços. Olhou ao redor. Carros passavam, as luzes da Terceira Ponte piscavam à distância, casais caminhavam no calçadão. Nada fora do comum. Absolutamente nada.
A sensação, no entanto, persistiu por alguns segundos angustiantes – um nó no estômago, um peso no peito, como se uma sombra invisível tivesse pairado sobre ele e depois se dissipado tão rapidamente quanto surgiu. Lucas franziu a testa, tentando encontrar uma lógica. Cansaço? Estresse acumulado do dia no hospital? Provavelmente. Ele respirou fundo algumas vezes, forçando os ombros a relaxarem.
O sinal abriu. Lucas engatou a primeira e acelerou, afastando a estranha sensação como se afasta um pensamento incômodo. Bobagem. Era apenas o cansaço falando mais alto. Logo estaria em casa, nos braços de Sofia, no seu refúgio seguro onde nenhuma sombra ousaria entrar.
O rádio começou a tocar uma melodia familiar, uma das canções que ele e Sofia amavam. Ele aumentou um pouco o volume, deixando a música preencher o carro e, esperava, afastar de vez aquele arrepio bobo. Ainda assim, uma minúscula lasca de inquietação teimou em permanecer em algum canto de sua mente, um eco quase inaudível de algo que ele não conseguia nomear, mas que, de alguma forma, parecia ter roçado de leve a borda da sua paz.
Parte 2
A Sombra da Tragédia (A Ferida)
"Tirou minha paz; esqueci o que é felicidade. Digo: 'Minha esperança se foi, assim como minha confiança no Senhor'." (Lamentações 3:17-18, NVT)
Capítulo 3
A manhã seguinte àquele breve e inexplicável arrepio no trânsito começou como tantas outras manhãs de quarta-feira. O despertador de Lucas tocou às seis em ponto, uma melodia suave que ele mesmo havia programado para evitar os sustos dos alarmes mais estridentes. Ao lado, Sofia ressonava baixinho, um dos braços jogado sobre os olhos para bloquear a primeira luz que teimava em furar as cortinas do apartamento com vista para a Baía de Vitória. Lucas sorriu. Mesmo com a carreira médica exigente e os plantões que muitas vezes o deixavam exausto, esses pequenos rituais matinais, a presença dela ao seu lado, eram a âncora que o prendia à doçura da vida.
Ele se levantou em silêncio, tomando cuidado para não acordá-la. No banheiro, enquanto a água do chuveiro esquentava, repassou mentalmente a agenda do dia: uma cirurgia complexa pela manhã, seguida de uma tarde de consultas e, à noite, o jantar especial que Sofia havia prometido para comemorar uma pequena conquista profissional dele que quase passara despercebida na correria. Um congresso importante havia aceitado um artigo de pesquisa que ele submetera. Era um passo significativo.
Vestiu-se, o cheiro do café que Sofia deixara programado na noite anterior começando a perfumar a casa. Encontrou-a na cozinha, já de pé, os cabelos presos num coque desajeitado que ele achava adorável, uma caneca fumegante nas mãos.
"Bom dia, meu pesquisador estrela," ela disse, a voz ainda com um toque de sono, mas os olhos brilhando com orgulho. Ela esticou os pés e lhe deu um beijo rápido. "Dormiu bem depois daquele seu dia intenso ontem?"
"Como uma pedra," ele mentiu em parte – a estranha sensação no carro ainda ecoava sutilmente em algum lugar, mas não queria preocupá-la com algo que ele mesmo havia classificado como cansaço. "E você, sonhou com geleiras ou com o jantar especial de hoje?"
Sofia riu. "Com os dois, alternadamente. Mas o jantar vai ser real, pode apostar. Você merece." Ela o abraçou pela cintura. "Estou tão orgulhosa de você, Lucas."
"Eu não conseguiria metade disso sem você," ele respondeu, afundando o rosto nos cabelos dela, sentindo o perfume que era só dela. "Você é minha inspiração e meu porto seguro."
A conversa fluiu leve durante o café, misturando planos para o fim de semana, comentários sobre notícias triviais e a expectativa pelo jantar. Logo, Lucas precisou sair.
Na porta, o ritual de despedida: um beijo mais demorado.
"Te amo," ele disse.
"Te amo mais," ela respondeu, com aquele sorriso que desarmava qualquer preocupação. "Até de noite. Não se atrase muito para o seu jantar de comemoração."
"Prometo tentar," ele disse, piscando para ela antes de sair.
Enquanto dirigia para o hospital, o movimento matinal de Vitória já ganhava corpo, mas o céu naquela manhã de primavera estava de um azul límpido, quase doloroso de tão bonito. Lucas ligou o rádio, cantarolando distraidamente com uma música antiga que ambos gostavam. Sentia-se leve, grato. A vida, apesar de seus desafios inerentes à sua profissão, era fundamentalmente boa, um presente. Aquele arrepio da noite anterior? Esquecido, dissipado pela promessa de um dia normal e pela expectativa do reencontro à noite.
A normalidade, no entanto, era uma fina camada de gelo sobre águas profundas e turbulentas, prestes a se romper com uma violência que ele jamais poderia ter imaginado.
Lucas chegou ao Hospital da Providência Divina sentindo-se produtivo e até um pouco eufórico pela perspectiva do jantar de comemoração com Sofia. A cirurgia da manhã, embora complexa, transcorreu sem intercorrências, um balé preciso de mãos experientes e decisões rápidas que ele tanto amava em sua profissão. O resto da manhã e o início da tarde se passaram na velocidade habitual de um grande hospital urbano: consultas, exames para analisar, o fluxo constante de pequenas e grandes dores humanas que ele se esforçava para aliviar.
Era quase meio da tarde quando ele estava em sua sala, revisando o prontuário de um paciente para a última consulta do dia, que o telefone interno tocou com uma urgência que não era comum para chamadas da recepção da emergência.
"Doutor Lucas?" A voz de Sandra, a enfermeira-chefe da emergência, soava tensa, desprovida da sua habitual calma profissional. "Preciso que o senhor desça aqui. Agora."
Um arrepio gelado, muito mais intenso e definido do que o da noite anterior, percorreu Lucas. "O que houve, Sandra? Alguma intercorrência grave?"
"Um acidente na BR-101, próximo à entrada da cidade, doutor. Múltiplas vítimas... uma delas... uma mulher... os documentos indicam que pode ser..." A voz dela falhou por um instante. "Por favor, apenas desça."
O mundo pareceu inclinar-se sob os pés de Lucas. As palavras "acidente", "rodovia", "mulher" começaram a girar em sua mente como estilhaços. Sofia. O jantar. Ela estaria voltando de algum lugar? Teria saído para comprar algo especial para a comemoração? Ele não perguntara seus planos exatos para a tarde. Um nó de pânico puro e gelado começou a se formar em sua garganta, sufocando o ar.
Ele não se lembrava de como chegou ao elevador, nem dos lances de escada que optou por descer correndo quando o elevador pareceu demorar uma eternidade. A emergência estava um caos controlado: macas, enfermeiros se movendo com rapidez, o cheiro acre de antisséptico e sangue misturado ao som de gemidos e ordens médicas.
Viu Sandra perto da sala de trauma, o rosto pálido. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o olhar dela, carregado de uma compaixão que ele conhecia bem – a mesma que ele tantas vezes dirigira a outras famílias – confirmou seu pior medo.
"Não..." ele sussurrou, a palavra rasgando sua garganta. "Não pode ser."
Sandra apenas segurou seu braço, a mão firme, mas o olhar devastado. "Lucas... eu sinto tanto. Tanto."
Ele se desvencilhou, quase que por instinto, e caminhou, ou melhor, flutuou, em direção à sala de trauma indicada pelo olhar dela. A cada passo, uma oração desesperada, uma negação veemente. Não ela, Senhor. Por favor, não ela. Qualquer um, menos ela.
E então, ele a viu.
Deitada na maca, imóvel, pálida de uma forma que ele, como médico, reconhecia como o limiar final. Os cabelos escuros, que ele acariciara naquela mesma manhã, agora estavam desalinhados, manchados de um vermelho que não pertencia a eles. O rosto sereno, mas sem vida. Os olhos cor de mel, que haviam brilhado para ele com tanto amor e promessas, estavam fechados para sempre.
Sofia. Sua Sofia.
O tempo parou. Os sons da emergência recuaram até se tornarem um zumbido distante. Tudo o que existia era ela, ali, e o grito silencioso que explodiu dentro de Lucas, um grito que parecia estilhaçar cada fibra do seu ser, cada certeza, cada oração, cada pedacinho da fortaleza que ele acreditava ter construído.
Aquele porto seguro, que ele pensara ser à prova de qualquer tempestade, havia sido varrido por um tsunami de violência e perda, deixando para trás apenas os destroços de um mundo que, em um instante, deixara de fazer qualquer sentido. A luz, doce e agradável, havia se apagado.
Capítulo 4
Os dias que se seguiram à morte de Sofia se fundiram numa névoa indistinta de dor, procedimentos burocráticos cruéis e um silêncio ensurdecedor que engolia o apartamento em Vitória, antes tão cheio de risadas e música. Lucas movia-se como um autômato, cumprindo as formalidades do velório e do enterro, recebendo os pêsames de amigos, colegas do Hospital da Providência Divina e membros da igreja. As palavras de consolo, por mais bem-intencionadas que fossem, ricocheteavam em sua armadura de choque, incapazes de penetrar a muralha de angústia que o isolava.
Ele mal registrava o que comia ou se dormia. A imagem de Sofia na maca da emergência era uma fotografia cruel gravada a fogo em sua mente, sobrepondo-se a todas as lembranças felizes que tentavam timidamente emergir. Sua fé, antes a Rocha firme que ele mencionara a Tiago e Ana, parecia agora um punhado de areia escorrendo por entre seus dedos. As orações eram apenas gritos silenciosos, sem palavras, ecoando no vazio.
Foi talvez uma semana depois, quando a torrente de visitas diminuiu e o silêncio da casa se tornou quase insuportável, que seu cunhado, irmão de Sofia, o procurou. Daniel sentou-se à mesa da cozinha, o mesmo lugar onde Lucas e Sofia haviam compartilhado o último café da manhã, e colocou alguns papéis sobre a mesa com uma expressão sombria.
"Lucas, eu sei que não há momento certo para isso, mas achei que você precisava saber," Daniel começou, a voz baixa. "Consegui uma cópia do boletim de ocorrência do acidente."
Lucas encarou os papéis sem realmente vê-los. "Acidente..." A palavra soava oca, inadequada para descrever a aniquilação de sua vida.
"Foi na BR-101, como te disseram," continuou Daniel, hesitante. "Um rapaz... dezenove anos. Parece que estava voltando de uma festa na praia, de madrugada, embora o acidente tenha sido à tarde. Testemunhas disseram que ele estava em altíssima velocidade, fazendo manobras perigosas."
Lucas sentiu um calafrio percorrer seu corpo, mas não era o mesmo daquela noite no trânsito. Este era diferente, mais cortante, mais raivoso.
"E o que aconteceu com ele?" perguntou Lucas, a voz surpreendentemente firme, quase metálica.
Daniel suspirou, passando a mão pelos cabelos. "Foi autuado por homicídio culposo, direção perigosa... pagou a fiança e vai responder em liberdade. Parece que tem bons advogados, família com dinheiro aqui na cidade." Ele empurrou uma pequena foto impressa, anexada ao boletim, na direção de Lucas. Era a foto da carteira de motorista do rapaz: um rosto jovem, quase infantil, com um sorriso arrogante que parecia zombar da dor de Lucas.
Naquele instante, a névoa da dor começou a se dissipar, não para dar lugar à aceitação ou à paz, mas a uma raiva fria e cristalina. Aquele sorriso. Aquela impunidade aparente. Enquanto Sofia jazia fria e sem vida, o responsável por sua morte estava livre, talvez já planejando a próxima festa.
"Liberdade..." Lucas repetiu, o nome do rapaz queimando em sua mente. "Ele tirou a vida dela, destruiu a minha, e está em liberdade?"
O conceito de perdão, os princípios de fé que ele tanto prezara, as palavras de consolo que ele mesmo oferecera a outros em situações de perda, tudo isso se desfez diante daquela imagem, daquela realidade crua e injusta. A "beleza" da vida havia se transformado em uma zombaria grotesca, e o "preço" daquela perda agora ganhava uma nova e terrível dimensão: o peso da injustiça e o desejo crescente por algo que se assemelhasse a uma vingança, ou, no mínimo, a uma punição que estivesse à altura do crime.
A semente da amargura, regada pela injustiça, começava a germinar no solo devastado do coração de Lucas.
Parte 3
O Mundo em Cinzas de Lucas
"Por que minha dor não tem fim, e minha ferida é incurável e não melhora? Te tornaste para mim como um riacho seco, cujas águas não são confiáveis." (Jeremias 15:18, NVT)
Capítulo 5
O apartamento na Praia da Costa, antes um santuário de luz, risadas e o aroma constante do café de Sofia, transformou-se numa tumba silenciosa. Cada objeto, cada canto, cada fresta de sol que ousava invadir pela manhã parecia gritar a ausência dela. Lucas vagueava pelos cômodos como um fantasma em sua própria casa, o eco de seus passos no porcelanato o único som a quebrar o silêncio opressor.
As primeiras semanas após o enterro foram um borrão. Amigos da igreja e colegas do Hospital da Providência Divina revezavam-se em visitas discretas, trazendo comida que ele mal tocava, oferecendo palavras de consolo que se perdiam antes de alcançar seus ouvidos. Ele agradecia com monossílabos, o olhar vago, desejando apenas que o deixassem em paz com sua dor. A "conexão pessoal e empática", que ele tanto valorizava como médico e que era um pilar de sua fé, parecia uma ironia cruel agora que ele mesmo se sentia desconectado de tudo e de todos.
Dormir era um campo minado. Se conseguia, os sonhos eram com Sofia – não os sonhos felizes que ela costumava ter com a Patagônia, mas fragmentos angustiantes do acidente, ou pior, sonhos da vida como ela era, que o faziam acordar com o grito do nome dela preso na garganta e a realidade esmagadora de sua ausência. A Bíblia de capa florida de Sofia continuava na mesinha de cabeceira, intocada, uma reprovação silenciosa. Ele tentara lê-la nos primeiros dias, buscando as passagens que antes lhe traziam conforto, mas as palavras pareciam vazias, zombeteiras diante da brutalidade do que acontecera. Onde estava o Deus da promessa, o Pastor que não deixava faltar, a Rocha firme? A fé que ele pensava ser inabalável desmoronava como um castelo de areia.
No hospital, pediu uma licença prolongada. A ideia de voltar, de ter que oferecer consolo a outros enquanto o seu próprio mundo estava em ruínas, era insuportável. A medicina, sua paixão, sua vocação, agora parecia um fardo. Como poderia falar de cura e esperança quando tudo dentro dele estava quebrado e desesperançoso?
Os dias se arrastavam numa monotonia cinzenta. Às vezes, encontrava-se parado em frente ao espelho do banheiro, encarando um estranho com olheiras profundas e um brilho febril de raiva contida nos olhos. A imagem do jovem motorista, com aquele sorriso insolente na foto da carteira de motorista, assaltava seus pensamentos com frequência, alimentando um fogo lento de ressentimento e um desejo por uma justiça que ele sentia que jamais viria.
As "intuições fortes" que antes o guiavam em diagnósticos difíceis ou em momentos de conexão espiritual agora eram apenas um vazio, ou pior, eram substituídas por pensamentos sombrios e obsessivos sobre o acidente, sobre o que poderia ter sido feito diferente, sobre a futilidade de tudo. O "preço" daquela perda e da injustiça que a acompanhava era a erosão de sua própria alma, a lenta asfixia da esperança que um dia o definira.
Daniel, seu cunhado, tentava manter contato, ligava quase todos os dias. Lucas apreciava a preocupação, mas as conversas eram curtas, monossilábicas. Como explicar o abismo que se abrira dentro dele? Como partilhar a raiva que fervia lentamente, a sensação de que Deus o havia abandonado ou, pior, nunca estivera realmente ali? Os amigos da igreja, liderados pelo Pastor Mateus – um homem bom e sábio que sempre admirara –, também se revezavam em mensagens e convites discretos para os cultos ou para um simples café. Lucas os ignorava educadamente ou inventava desculpas. A ideia de sentar-se em um banco de igreja, ouvir hinos de louvor ou palavras sobre a bondade divina parecia uma afronta, uma piada de mau gosto.
Sua licença do Hospital da Providência Divina se estendia. O diretor, Dr. Alencar, um velho amigo de seu pai, ligara algumas vezes, oferecendo apoio, mais tempo, o que fosse necessário. Lucas agradecia, mas a perspectiva de voltar a vestir o jaleco branco, de encarar a dor alheia quando a sua própria era um monstro que o devorava por dentro, parecia impossível.
Numa tarde particularmente cinzenta em Vitória, daquelas em que a brisa marítima trazia um frio úmido que penetrava nos ossos, ele se pegou revirando os papéis do boletim de ocorrência que Daniel lhe deixara. O nome do rapaz – Rafael Antunes – e sua foto com aquele sorriso displicente saltavam aos seus olhos. Dezenove anos. Uma vida inteira pela frente, enquanto a de Sofia fora brutalmente ceifada. Lucas sentiu o sangue ferver. Começou a pesquisar o nome na internet, uma busca febril e anônima. Encontrou perfis em redes sociais, fotos de festas, carros, amigos sorridentes. Uma vida aparentemente despreocupada, intocada pela gravidade do que fizera.
"Irresponsável," Lucas sibilou para a tela do computador, o maxilar travado. "Ele não tem ideia. Nenhuma ideia do que tirou de mim."
Aquele versículo que Sofia tanto amava, de Jeremias, sobre Deus ter planos de paz e não de mal, planos de dar esperança e um futuro, agora soava como escárnio em seus ouvidos. Que esperança? Que futuro? Tudo o que ele via era um presente em ruínas e um futuro que se estendia como um deserto árido e sem sentido.
As tentativas de Sofia de fazê-lo retornar aos devocionais matinais, ou as discussões animadas que tinham sobre as pregações de domingo, agora eram apenas lembranças dolorosas que alimentavam sua crescente amargura. A fé que um dia fora o alicerce de sua vida e de seu casamento desmoronava, e em seu lugar, um cinismo frio começava a se instalar. Se Deus era tão bom e poderoso, por que permitira aquilo? Por que Sofia? Por que ele? As perguntas ecoavam em sua mente, sem resposta, aumentando seu isolamento e sua revolta silenciosa.
O apartamento, antes um lar vibrante, tornava-se cada vez mais um mausoléu. Lucas mal se alimentava, o sono era errático. A barba por fazer, as roupas amarrotadas, o olhar perdido no vazio – ele era a imagem da desolação. O "mundo de luz" não era mais nem uma memória distante; era uma miragem cruel de uma vida que lhe fora roubada. E no centro desse mundo em cinzas, a figura sorridente e impune de Rafael Antunes começava a crescer, transformando-se no foco de toda a sua dor e raiva não processadas.
Capítulo 6
Os dias escorriam, indistintos, um após o outro, cada um uma cópia pálida e dolorosa do anterior. O apartamento de Lucas em Vitória, antes um testemunho de vida compartilhada e sonhos futuros, tornara-se o epicentro de sua reclusão. A poeira fina que começava a se assentar sobre os porta-retratos de Sofia era um símbolo da paralisia que o dominava.
No entanto, sob a superfície de apatia e dor, uma corrente subterrânea de outra natureza começava a ganhar força. A imagem de Rafael Antunes, o jovem motorista, com seu sorriso displicente na foto da carteira de habilitação, não era mais apenas um pensamento passageiro que alimentava a tristeza; tornara-se um ponto focal, quase uma obsessão. Lucas passava horas diante do notebook, a luz fria da tela banhando seu rosto barbado e tenso na penumbra da sala. Ele vasculhava as redes sociais do rapaz, cada foto de festa, cada postagem despreocupada, cada comentário de amigos alheios à tragédia que ele causara, era como uma nova facada, um novo insulto à memória de Sofia e à sua própria dor. [...].
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